17 de julho de 2020

O problema do dom-juanismo por Emil Cioran / "e serão ambos uma só carne." Mc. 10:8

       
         O Dom Juan não se satisfaz com uma mulher apenas. No entanto, o
plano de Deus para homem e mulher é a realização no casamento. “Aquilo que uniu Deus, não separe o homem.” (Mateus 19:6)

Não sei, talvez o problema exposto por Cioran seja o da multiplicidade. Como há uma infinidade de coisas, um infinito para nós, queremos a multiplicidade, experimentar a vida intensamente. Nada há de errado nisso, desde que seja legitimamente.E este é outro problema: O que é legítimo? Penso que tudo que não afete o outro de forma a causar nele prejuízo, mas isso é assunto para outro texto.

O problema do Dom Juan é que ele não consegue ver em uma só mulher a capacidade do múltiplo infinito do mundo, já que ela será o ser ao qual será seu amor direcionado, buscando a síntese em uma só pessoa, ou seja, a univocidade. Seria isso possível?
Cioran diz que aquele que ama várias mulheres não ama nenhuma, pois seu amor vai embora assim que se satisfaz e volta a ter desejo por algo novo, uma nova aventura.

O problema do desejo insatisfeito na multiplicidade da vida está nos filósofos antigos, está em Agostinho, por exemplo, que lança a felicidade, a completude, nos braços de Deus. Nada mais correto a ser feito! Porém, tudo que provém de Deus é satisfatório e consistente, o próprio Agostinho fala da frugalidade, que é ser frutífero, que é ter consistência, que é proceder do Ser que é Deus, que é o Sumo Bem. Logo, aquilo que procede de Deus é bom e duradouro. Não é o próprio Deus, mas sendo procedente dele, pode ser usufruído com graça no coração, assim como quando comemos um fruto e o saboreamos, e, por ele, agradecemos.

            Não há satisfação na multiplicidade dispersa, mas na união da multiplicidade com o uno que é o Deus único e trino.

João Batista disse que o homem (um ser humano) não pode ter coisa alguma se do céu não lhe for concedido. (João 3:27) Ou seja, voltamos à questão da frugalidade de Agostinho, tudo que procede de uma raiz santa é santo, tudo que procede de Deus é santo, bom e digno de ser usufruído com graças a Ele. Assim também o conhecemos, e conhecer a Deus é um processo contínuo.

O texto de Emil Cioran, em Os cumes do desespero:

“O amor, quanto mais intenso e concentrado, mais se limita em extensão, mais exige um caráter individual e único. Assim acontece que as grandes paixões descobrem o absoluto numa mulher, que, na mais reduzida análise, mal pode salvar sua própria existência biológica. Considerado de fora, o amor é tão absurdo que não pode ser apreciado senão por uma absurdidade. Por isso, sobre o amor não se podem emitir considerações, mas apenas espantos.

            Dentre milhões de mulheres devo escolher uma só, limitar-me a apenas uma? Seria necessário que ela fosse a cada momento outra, capaz de tanta transfiguração, que ressurgisse nova e improvável. Quantas pessoas tem paixão tão grande, para a cada momento ver luzes novas e encantos modificados? A mulher é uma criatura de parcas possibilidades, ela não resiste às exigências de um homem torturado, para quem o amor é apenas uma forma de realização de vida. É necessária uma paixão imensa como a imbecilidade para poder amar uma só mulher. Ao sentirmos porém a insuficiência de todas as formas de vida, quando nos satisfaz apenas o que é desvio que cresceu paradoxalmente e se desenvolveu com exagero, que mais podemos encontrar numa só mulher? Ao decidirmos trocar de mulher, diante da recusa de surpresas psicológicas é impossível não sermos enfeitiçados pelo jogo de fisionomias, pela diversidade de expressões, é inevitável buscarmos apaixonados um mistério psicológico – que jamais encontramos, por não existir. A sensibilidade feminina é demasiado periférica e receptiva para dispor dos recursos inesgotáveis de um mistério. O encanto absurdo do amor autêntico, do amor intenso, é o de encontrar mistério numa só criatura, descobrir – ou melhor, inventar – um Infinito numa existência individual de uma desconfortante finitude.

            Ama várias mulheres quem não pode amar. O dom-juanismo é a vantagem e o defeito daqueles que se desentenderam com Eros, mas que ainda têm suficientes reservas de vida para não chegar à impotência psíquica ou erótica. A necessidade de variar os aspectos do mundo, gerada por um tédio orgânico, leva, no terreno do amor, ao dom-juanismo. Todos os homens que levaram a vida interior aos seus últimos limites, que se desesperam pelo sentido da vida e que se torturam nos cumes, tornam-se fatalmente um Dom Juan, assim como seus antípodas, homens estreitos, desprovidos de vida interior, com capacidades extremamente reduzida de sentir e compreender. A vida apresenta essa estranha dualidade de reunir na realização exterior dois tipos opostos de pessoas: os deficientes e os demasiados. É necessário um sentido psicológico para perceber se alguém chegou a essa respectiva forma de vida por demasia ou por debilidade. Um pode ser viciado e imoral por deficiência, outro por excesso; um pode chegar ao desespero por incapacidade, por falta de resistência e inteligência, outro por excesso de problemática e interioridade.

            As pessoas se equivocam ao situar no mesmo plano de vida anímica todos os homens que se parecem, por fora e na aparência, em suas realizações. O dom-juanismo é interessante e sintomático apenas naqueles em que ele surge como fruto do desespero, de uma reflexividade e de preocupações íntimas demasiado intensas. Nos cumes do desespero, quem não é dom-juan não assimilou organicamente o desespero, não viveu intensamente os estados limítrofes, os ardores e os consumos supremos, mas experimentou-os artificialmente, como num vago pressentimento. Ser um homem de grandes solidões significa amar todas as mulheres. E amar todas as mulheres significa não amar nenhuma. Os que fazem a filosofia da vida não passam de diletantes do Eros, que depositam demasiada paixão nos problemas da vida para ainda terem alguma paixão pelos seus aspectos. Nos cumes do desespero, a superficialidade no amor é uma superficialidade profunda.” (pág. 142 – 144/ CIORAN, Editora Hedra)

Eu sempre recomendo que uma pessoa leia o autor e tire suas conclusões pessoais do que lê. Receio causar injustiça ao autor ao colocar no texto um significado que ele não quis colocar ali. Todavia, não posso deixar de ver duas coisas no texto do Cioran: a pluralidade e a univocidade. A pluralidade é a dispersão do homem relativa ao amor, a univocidade é a concentração desse amor em uma mulher apenas.

        Toda mulher vítima de um Dom Juan, quer ser apenas amada por ele, não quer rivais, toda sedução capaz de ser realizada por um Dom Juan precisa ser concentrada nela. O infinito se manifesta na pluralidade da existência, nas várias mulheres que o Dom Juan quer possuir, porém, aquele que conquista apenas uma mulher e a quer todo dia nova, todo dia mais bela, se esforçará para ver nessa mulher todo o infinito, toda pluralidade, inventar nela, se necessário for, o mistério. Ainda que ela não seja capaz de muita transfiguração, como diz Cioran, o homem se esforçará em seu amor para conseguir ver, nela, o amor que procura.

O homem que conquista a mesma mulher todos os dias, se dispõe a um esforço que só pode ser advindo de um amor terno e insistente, que só pode ser visto no modelo de amor descrito na Bíblia Sagrada, exposto pelo apóstolo Paulo, o amor entre marido e mulher, recorre à figura de relacionamento entre Cristo e a Igreja, e nesse sentido o amor do homem sobrepõe a tão somente o amor erótico, ele é amor ágape, amor que luta pela preservação e proteção, amor redentivo. É necessário apenas que leiamos o texto da carta de Paulo aos Efésios.

“Te desejo muito além do prazer...” Roupa Nova

Existe o dom-juanismo feminino, mas não estudei o bastante para falar. E na questão da fragilidade emocional, todos nós somos frágeis, tanto homens como mulheres estão sujeitos ao tipo sedutor que os faça sofrer por amor. Todo filósofo(a) deve ser visto, ao meu ver, como filho(a) do seu tempo.

"E serão ambos uma só carne."

"porém, desde o princípio da criação, Deus os fez homem e mulher.Por isso, deixará o homem a seu pai e mãe [e unir-se-á a sua mulher], e, com sua mulher, serão os dois uma só carne. De modo que já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não separe o homem." Marcos 10: 6 - 10 NAA




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